Palavras que discriminam: discutindo o preconceito

Em 23 de abril de 1500, os portugueses chegavam a, como eles nomearam, Porto Seguro na Ilha de Vera Cruz, que mais tarde receberia o nome de Brasil. Trouxeram consigo diversos pertences, costumes e, mais do que isso, trouxeram sua língua, que mais tarde se tornaria a língua oficial do nosso país.  A língua traz consigo uma bagagem histórica e também representa um povo, seus costumes e seus preconceitos. Assim, quando os portugueses atracaram em território brasileiro, eles trouxeram muito mais do que meros pertences, eles trouxeram costumes e os preconceitos existentes em sua sociedade.

A língua portuguesa mudou muito nestes 500 anos de Brasil: herdou palavras de idiomas indígenas, dos idiomas africanos e, mais tarde, de outros idiomas como o francês e o inglês. Ela teve papel importante na construção da identidade do povo brasileiro, representando seus costumes e contribuindo com a formação de seus ideais.

Uma  língua pode dizer muito sobre as pessoas que a utilizam. Analisando a linguagem, é possível, também, observar construções que definem uma sociedade.

Nesta matéria, serão explorados os preconceitos que circulam pela língua portuguesa no Brasil.

 

O preconceito da palavra

“Travesti é uma pessoa que não se identifica com o gênero biológico e se veste e se comporta como pessoas de outro sexo” (EBC).

As pessoas, muitas vezes, pensam que isso é bobagem, que termos como “denegrir” ou “traveco” são apenas palavras e que não trazem consigo uma influência histórica e social. Muitas vezes não enxergamos que a palavra “traveco”, por possuir o sufixo “-eco” – que é utilizado geralmente para diminuir um termo (“livreco”, “jornaleco”) -,  apresenta um preconceito e inferioriza o grupo dos transexuais; ou que a palavra “denegrir” – usada normalmente para indicar a ação de “manchar a reputação ou difamar” -, por ter radical derivado de “negro” faz com que atribuamos um valor negativo às pessoas afrodescendentes.

Outros exemplos de preconceito são as palavras geralmente utilizadas para ofender alguém de determinado gênero. Para ofender um homem, às vezes se usam palavras como “bicha”, “viadinho”, ou outras relacionadas a sua orientação sexual,  o que expressa um preconceito contra homossexuais. Já quando queremos ofender uma mulher, usamos palavras como “vadia”, “fácil” ou outras expressões relacionadas ao comportamento sexual. Dessa forma, reforçamos concepções machistas de que a mulher deve se portar da maneira menos sexualizada.

Esses e diversos outros preconceitos são expressos diariamente pela maneira como articulamos as palavras que, por sua vez, os tornam mais fortes e, com isso, acabamos entrando em um círculo vicioso: os preconceitos constroem uma língua preconceituosa; a língua põe em circulação sentidos preconceituosos e assim por diante.

Contudo, muitas vezes é difícil desviar de certas palavras e expressões quando queremos construir uma frase, pois nós já nos habituamos a utilizá-las.Joao4FB_IMG_1439902697190-300x300

A página “Humaniza redes”, no Facebook, discute este e diversos outros tipos de preconceitos.

 

 

O preconceito inconsciente

Muitas pesquisas já foram feitas sobre o assunto, mas, afinal, o que é o inconsciente? Não se sabe tudo, mas as pesquisas apontam que ele é responsável pelas decisões instintivas e ações espontâneas. O nosso inconsciente carrega pensamentos e informações que não conseguimos acessar, ele é o que processa a maior parte das ações emocionais, aquelas que não são pensadas conscientemente.

Joao2morguefile- violin“Um bom exemplo é o de um violinista, para tocar ele precisa realizar muitas ações simultâneas, como segurar o instrumento, ler a partitura, gerar os movimentos que vão produzir o som, entre outras ações biológicas como respirar. Se ele pensasse em cada uma delas, provavelmente não seria possível tocar com maestria.”

 

Mas que relação tem a linguagem com isso? Tudo. Quando aprendemos uma nova língua, nós pensamos separadamente em cada palavra que vamos utilizar, porém, com o tempo, passamos a realizar essa ação inconscientemente, isto é, pensamos nas informações, mas não nas palavras em si, elas são escolhidas pelo nosso inconsciente, baseado no que ouvimos e falamos com mais frequência. Por isso é tão difícil excluir do nosso vocabulário palavras preconceituosas como “denegrir” ou “traveco”.

O inconsciente pode ser condicionado por meio de treino ou hábito. Quando usamos ou ouvimos uma palavra constantemente, passamos a utilizá-la para formar frases, e assim palavras preconceituosas se proliferam ainda mais. Porém, também podemos “ensinar” a ele as palavras que queremos utilizar. Se sempre que falarmos ou escrevermos uma palavra que carrega um preconceito nós nos corrigirmos e utilizarmos outra, o nosso inconsciente muda e consequentemente passamos a utilizar outras palavras. Por isso é necessário tentar variar e fazer uso de palavras que não promovam preconceitos.

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Lutando contra o preconceito

Um dos problemas enfrentados na luta contra esses preconceitos são as próprias pessoas. Muitas delas pensam que tudo isso é bobagem e que existem coisas muito mais importantes, preconceitos muito mais evidentes e que estes, sim, devem ser combatidos. Realmente é difícil enxergar, afinal de contas, desde a infância, aprendemos que as palavras são neutras e não expressam opiniões e pensamentos, mas a língua é um reflexo da sociedade e muito mais do que isso, ela transmite ideais. Imagine ouvir repetidamente expressões como “o lado negro da força”  ou outras que relacionam o termo “negro” com sentidos ruins. Inconscientemente, passamos  a aceitar essas palavras e utilizá-las no nosso dia a dia, o que reforça o racismo.


received_1041085789235906A escola tem um papel muito importante no combate ao preconceito. Ela é parte importante da formação dos futuros adultos de uma nação. Uma discussão importante a ser realizada, por exemplo, é sobre o mito da imparcialidade, rompendo com a concepção de que a língua seria neutra e refletindo sobre as diversas relações históricas e sociais que participam da construção dos sentidos.

Discussões como essa promovem reflexões, por exemplo, sobre o uso dos pronomes no plural, como o “eles” para se referir a um grupo com homens e mulheres, mas nunca o contrário. 

“É necessário assumir um movimento de silenciamento de palavras que promovem preconceitos, porque, assim, silenciamos os sentidos preconceituosos que elas produzem. Nós precisamos fazer circular ideias, textos e discussões que tragam à tona esse assunto, favorencendo a tomada de consciência frente aos preconceitos que já são parte da língua”, defende Cristiane Megid, professora de Língua Portuguesa do Cotuca.

 

Nós vivemos em uma sociedade preconceituosa, não há como negar, mas, e nossos descendentes, eles viverão esses mesmos preconceitos? Isso cabe a nós decidir. Ninguém nasce preconceituoso; ideais e pensamentos discriminatórios nos são passados ao longo da vida. Se realmente quisermos acabar com qualquer tipo de preconceito, cabe a nós não transmiti-los às gerações que ainda virão.

 

 

Para saber mais

Presidente ou  presidenta?

Você sabia que desde 1956 o termo “presidenta” consta na legislação brasileira? Isso está estipulado na lei 2.749, de 1956, do senador Mozart Lago (1889-1974). Gramaticalmente, a palavra
“presidente”
não possuiu flexão de gênero, mas intuitivamente pensamos na figura masculina ao ouvi-la ou lê-la.

Presidente ou Presidenta?

 

O inconsciente

Está aí um assunto muito interessante e atual, apesar de não ser novo. Muitas pesquisas já foram feitas e artigos publicados sobre o assunto:

O mundo secreto do inconsciente

Palavras proibidas revelam desejos inconscientes

Inconsciente

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