Crônica feminista

Há cerca de dois anos, eu estava de férias, junto com duas primas e uma conhecida (é melhor não citar o nome, mas vou chamá-la de J.), que estava de viagem, hospedada em minha casa, e decidimos ir ao shopping, para passar o tempo. Era um dia qualquer, talvez sábado. Saímos pouco depois do horário de almoço, já sabendo qual seria o horário de voltar, no final da tarde, por volta das 18h, quando o céu começa a escurecer.

Éramos um tanto quanto comuns: quatro adolescentes passeando pelo shopping, assistindo a algum filme e comendo fast food na praça de alimentação, sem nenhum maior de idade por perto, provavelmente por causa da sensação de independência. Eu tinha 16 anos e minhas primas 12, J. era intermediária entre nós, tinha uns 14 anos, mas era a que possuía o corpo mais formado, era considerada “cheinha” e bonita.

Na hora de ir embora, provavelmente (não me lembro muito bem) ligamos para minha mãe para avisar que estávamos voltando, então sentamos no ponto de ônibus e esperamos. Assim que ele chegou, entramos e sentamos no fundo. Se não me engano, havia 5 lugares, sentamos uma do lado da outra e na janela havia um homem, já adulto, quieto e normal, como uma pessoa qualquer, que ficou do nosso lado. Fomos o caminho todo olhando pela janela e viajando nos pensamentos.

Próximo à metade do nosso destino, quando chegávamos ao terminal para pegar o segundo ônibus , minha prima que estava do meu lado disse algo parecido com isso, baixinho, para só eu ouvir:
– Não olha agora, mas aquele homem está de mãos dadas com a J.!
Sem saber o que estava acontecendo, mas já assustada, eu respondi:
– O quê? Ela nem conhece ele.
– Fica quieta e vamos lá para a frente.
– Eu não, se todo mundo sair, ele vai perceber.
– Vamos logo!

Minhas duas primas saíram discretamente e foram para a porta da frente do ônibus. Eu estava meio dura, com um certo receio de me mexer e mostrar minha tensão. Olhei para o lado discretamente e não vi nada, depois olhei melhor e vi que realmente J. e o estranho estavam de mãos dadas, com os braços grudados e ele com a outra mão em cima da perna dela.

Eu dei um pulo e fui lá para a frente, perguntei às minhas primas o que estava acontecendo, mas elas não sabiam direito, disseram que era para a gente “despistar” aquele homem, saindo do ônibus o mais rápido que pudéssemos. Tivemos sorte, estávamos chegando no terminal e o outro ônibus já estava lá, parado. Assim que o primeiro ônibus parou, saímos cada uma para um lado, então não pude perceber pra onde J. foi. Nos juntamos de novo no outro ônibus, ainda bem que estávamos todas as quatro lá. E, em poucos segundos, o ônibus fechou a porta e foi embora.

Olhei para os lados e encontrei o homem, ele estava apressado, aparentemente pretendia entrar no mesmo ônibus que nós. Perguntamos para J. se tinha acontecido alguma coisa, ela disse que não, que ele só estava pedindo para ela beijá-lo. Pouco depois que o susto passou, perguntamos se ela ia contar para sua mãe e, sem nem pensar, ela respondeu:
– Não! Senão ela não vai deixar mais eu sair aqui em Campinas. E, quando a gente voltar para Pernambuco, ela vai contar para o meu pai, que não vai mais deixar eu sair de casa, só para a escola e para a Igreja.
– Mas você não fez nada, não é culpa sua!
– Não aconteceu nada… Ele só queria um beijo e a gente conseguiu fugir!

Tentamos analisar o fato com racionalidade, mesmo tão jovens. Achamos que o certo era contar para a mãe, mas concordamos em não contar, já que essa era a escolha de J. Não sabemos o que poderia ter acontecido com ela se não tivéssemos tido a sorte de poder “fugir”. E a mãe dela não sabe o risco que a filha correu. Muitas mães não sabem os riscos que as filhas correm, todos os dias, por que esses são silenciados pelo medo das garotas. Medo de serem proibidas de andarem com a roupa que quiserem, medo de saírem de casa em qualquer horário, medo de serem abusadas e ainda terem que ouvir que “estavam pedindo”… Depois ainda dizem que não precisamos de feminismo.

Foto: divulgação (Thing Olga e Chega de fiufiu)

Vamos juntas?

O movimento “Vamos juntas?” foi criado pela jornalista Babi Souza, no ano de 2015. Na página do Facebook várias mulheres compartilham seus curtos depoimentos sobre situações de risco que viveram, por andarem sozinhas nas ruas e serem perseguidas por homens. Hoje a página tem cerca de 330 mil pessoas, que se entendem e se apoiam, que dão sentido à palavra “sororidade”.

3 Comentários

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Editorial – 3ª edição – Conexão Cotucaresponder
abril 16, 2016 em 12:04 AM

[…] de futebol, por Lucas Pedroso, o combate ao mosquito Aedes Aegypti, por João Ruffatto, e uma crônica feminista de Vivian […]

André Pastiresponder
abril 18, 2016 em 06:04 PM

Adorei o texto! Muito importante refletirmos sobre as desigualdades de gênero nos usos da cidade…

Doraresponder
maio 01, 2016 em 10:05 PM

Importante refletir sobre a situação das jovens. Quanto mais informação, mais teremos como discutir o problema da violência contra a mulher. E menos naturalizamos a culpa das mulheres. Homens devem ser criados como homens, como seres que devem respeitar todos os próximos.

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