Trote violento: e eu com isso?

No dia 4 de fevereiro, ocorreu o Trote Solidário 2016 no Cotuca. Com brincadeiras, interações e atividades conscientes, o evento proporcionou um primeiro contato saudável entre calouros e veteranos. Muitos alunos novos, que esperavam um trote humilhante e depreciativo – e alguns até que já passaram por tal situação -, acabaram se surpreendo ao se deparar com a realidade do Trote Solidário.

Talita, aluna de Enfermagem 16, confessou que esperava ter de “deitar no chão e rolar na grama”. Sobre os próximos anos no colégio, acha que “será difícil de acompanhar, porque vai ser bem corrido”. Assim como Talita, muitos alunos ficam com um pouco de receio de chegar em um ambiente novo com pessoas desconhecidas, onde, por pelo menos três anos, passarão por diversos obstáculos. Toda essa tensão e esse medo podem ser parcialmente quebrados ao receber os calouros com brincadeiras saudáveis e hospitalidade. É essa, talvez, a essência de um trote ideal. No entanto, nem sempre eles são assim.

A ideia de integração do trote foi e ainda é distorcida em universidades no Brasil inteiro. Alguns casos, como ser obrigado a ingerir comida estragada com vômito, ser atingido por produtos químicos e até tentativas de estupro foram registrados em boletins de ocorrência e divulgados na mídia. Frente a essas inúmeras denúncias, foi criada a CPI do trote.

 

O que é uma CPI?

A Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) é um organismo de investigação e apuração de denúncias que visa proteger os interesses da coletividade (da população brasileira).

 

Idealizada após denúncias de abusos ocorridos na Faculdade de Medicina da USP (Universidade de São Paulo), a CPI concluiu o trabalho após 83 dias de investigação, com mais de 100 depoimentos e 37 sessões (reuniões onde pessoas são convocadas a prestar depoimento). Alguns dados, de todos os registrados no relatório final de 194 páginas, mostram que a maioria dos relatos de violação de direitos estão relacionados com os cursos de medicina. Adriano Diogo (PT), presidente da CPI e da Comissão de Direitos Humanos (CDH), diz que a prioridade atualmente é exterminar os atentados violentos ao pudor, pois estes podem categorizar tortura em casos extremos. “A avaliação do aluno e da universidade é para quando ele for fazer concurso de admissão para bolsas, para financiamentos de pesquisa. Nenhum torturador que é treinado para ser torturador na escola pode ascender na carreira sem que apareça no seu currículo que ele participou de atividade de tortura. E, como tortura não prescreve, é como nos crimes da ditadura: torturador tem que ficar marcado para o resto da vida, como as marcas que eles deixaram em seus torturados”, afirma Diogo.

Além da CPI feita no começo de 2015, há em São Paulo a lei estadual nº 10.454 de 1.999, que proíbe a realização de trote aos calouros de escolas superiores e de universidades estaduais, quando promovido sob coação, agressão física, moral ou qualquer outra forma de constrangimento que possa acarretar risco à saúde ou à integridade física dos alunos. A responsabilidade por adotar medidas preventivas e impedir a prática de trotes que violem os Direitos Humanos é da instituição. As penalidades podem pertencer a três esferas: administrativa, civil e penal.

Penalidades

Administrativa: determinada pela própria instituição, varia desde suspensões até expulsões. Para ajudar no recebimento de denúncias, a USP criou o Disque Trote, que auxilia no monitoramento dos abusos.

Penal: apesar da atividade do trote em si não ser criminalizada, atos como lesão corporal, injúria, ameaça, constrangimento ilegal e até homicídio estão presentes em trotes espalhados pelo estado. Cortar o cabelo do calouro contra a sua vontade caracteriza crime de lesão corporal, por exemplo.

Civil: de acordo com a Constituição Federal, um dos fundamentos da república é a dignidade da pessoa humana. Diversas vezes, esta é perturbada por atos violentos contra as convicções pessoais, políticas, filosóficas, religiosas e sociais do calouro. Constituído por medo e dor, o trote violento marca o psicológico dos alunos como a tortura marca o torturado pelo resto da vida.

 

De acordo com Paulo Endo, psicanalista e professor doutor do Instituto de Psicologia da USP, há um ambiente de alta competitividade relacionado ao vestibular. Endo diz que “o jovem pode associar esta competição ao que ele percebe como correto entre os adultos, quando uns passam os outros para trás para ter um lugar de destaque”. Para demonstrar superioridade e força, o veterano acaba humilhando o calouro de maneira desumana através do trote violento. Além disso, o calouro chega deslocado na universidade e vê, no grupo de veteranos, o primeiro círculo social para que não fique “sozinho”. Assim, sobram-lhe poucas opções: ou concorda com as humilhações, ou pode ser rejeitado futuramente pelo grupo.

Como solução a tantos problemas e desavenças causados pelo trote violento, em 1999 foi criado um projeto de lei, aprovado apenas em Setembro de 2015. Essa lei proíbe o trote nas instituições públicas de ensino, com exceção do trote solidário, e permite que os responsáveis possam ser expulsos se forem alunos, e exonerados caso sejam servidores públicos.

O trote solidário

Mas, afinal, do que se trata o trote solidário? É uma recepção de calouros na qual as atividades têm cunho social, cultural ou assistencial, como acontece no Cotuca. Na Unicamp, por exemplo, os calouros são recebidos e tratados com muito respeito. “No dia da matrícula, eles nos perguntaram se podiam nos pintar e, quem respondeu que sim, eles pintaram. Mas sem exagero, afinal muitos ainda iam ver suas moradias. Naquele dia, ainda almoçamos na feirinha e fomos para o bar, mas só quem pôde e quis mesmo ir. No bar, ninguém nos obrigou a tomar nada, quem quisesse bebia cerveja, quem não, pedia o que queria”, conta Carolina Ferreira Pieroni, caloura do curso de Midialogia do Instituto de Artes da Unicamp. Na Etecap (Escola Técnica Estadual Conselheiro Antonio Prado), o trote é amigável. “Teve gente me pintando, mas ‘de boas’”, comentou Yara Zanvettor, que está no segundo ano do Ensino Médio. 

A finalidade do trote é simples: entreter e integrar os calouros. Aliás, não entreter somente aos calouros, mas todos os envolvidos, como os veteranos. Ainda há trotes violentos pelo Brasil, mesmo em 2016. Atitudes como as da CPI do trote são importantes, mas também é necessária a ajuda dos próprios universitários. A denúncia tem de ser constante. Até a disseminação de mensagens preconceituosas podem incentivar os abusos feitos nos trotes. Afinal, entrar na faculdade não é para ser um trauma, um obstáculo, mas sim uma conquista, uma vitória.

1 Comentário

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Editorial – 3ª edição – Conexão Cotucaresponder
abril 18, 2016 em 02:04 PM

[…] para os integrantes do Conexão Cotuca. Nesse sentido, Douglas Cardoso e Gabriel Collado discutem o trote; Júlio Moreira fala sobre os estágios; André Piau e Giovanna Batalha […]

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