Polícia: qual e para quem?

A atuação da Polícia Militar no país tem sido alvo de críticas contundentes por parte de diversos setores da sociedade brasileira. Entre os questionamentos, estão: abuso de poder, violação dos direitos humanos e despreparo para lidar com as reivindicações das organizações populares e sociais. Isso tem trazido à tona uma nova questão: a necessidade de desmilitarizar a polícia.

Legislação
A organização da Polícia Militar tem como base a hierarquia e a disciplina, como consta na lei complementar Nº 893, DE 09 DE MARÇO DE 2001. A hierarquia dela é a ordenação progressiva da autoridade, em graus diferentes, da qual decorre a obediência, dentro da estrutura da Polícia Militar, culminando no Governador do Estado, Chefe Supremo da organização. Já os valores fundamentais, determinantes da moral da PM, são os seguintes:

I – o patriotismo;

II – o civismo;

III – a hierarquia;

IV – a disciplina;

V – o profissionalismo;

VI – a lealdade;

VII – a constância;

VIII – a verdade real;

IX – a honra;

X – a dignidade humana;

XI – a honestidade;

XII – a coragem.

O policial, ao ser submetido ao pensamento e à lógica militar, age de forma a identificar, mobilizar e aniquilar o inimigo. 

Segundo dados do departamento de Polícia Civil e da Polícia Militar, divulgados no Diário Oficial do estado de São Paulo pela Secretaria de Segurança Pública, um total de 73 pessoas foram mortas por policiais militares no mês de abril de 2016,  média que ultrapassa dois mortos por dia, enquanto apenas 5 pessoas foram mortas por policiais civis nesse mesmo mês.

Abril/2016 FONTE: DEPARTAMENTO DE POLÍCIA CIVIL E DA POLÍCIA MILITAR (1) Exclui a Capital. (2) Inclui Termos circunstanciados indiretos e diretos, ou seja, com e sem elaboração de boletim de ocorrência anterior. (3) Dados da Corregedoria da Polícia Civil. (4) Dados da Corregedoria da Polícia Militar. (5) Dados do Serviço de Informações Criminais da Divisão Anti-sequestro. (6) Incluindo Roubo Carga e Banco. (7) Homicídio Culposo inclui Homicídio Culposo Acidente de Trânsito. “(8) Até março de 2015, a Corregedoria da Polícia Militar utilizava uma categoria específica denominada “”Homicídio doloso – fora de serviço (reações)””, contabilizando somente os casos em que consideravam presentes excludentes de ilicitude. Eram excluídos portanto, os homicídios dolosos e culposos. Esses dados sempre foram publicados no D.O, no último dia do mês seguinte da ocorrência dos dados. A partir de abril/2015, a Polícia Militar adequou à exata classificação da Res. SSP 40/15, passando a contabilizar todos os casos de morte em decorrência de qualquer intervenção considerada lícita do policial militar em folga, inclusive os casos em que presentes as excludentes de ilicitude. Continuam excluídos os homicídios dolosos, inclusive “”homicídios múltiplos”” e culposos, que são contabilizados nos termos da Res. SSP 160.”

A agressividade causada pela militarização da polícia teve outro capítulo recentemente: a forma com que a PM paulista lidou com as manifestações de resistência ao “Plano de Reorganização Escolar” do governo do estado de São Paulo – Geraldo Alckmin, PSDB -, anunciado em 23 de setembro de 2015.

Segundo a Secretaria de Educação do estado, o plano  “visava, por meio da divisão por idades, oferecer uma escola mais preparada para as necessidades de cada etapa de ensino e atenta à nova realidade das crianças e jovens”.  Na prática, tal plano levaria ao fechamento de diversas escolas e ao aumento do número de alunos por sala. Estima-se que 311.000 estudantes teriam de mudar de escola.

Houve grande reação contrária ao plano. Estudantes protestaram e ocuparam diversas escolas que seriam fechadas, inclusive com o apoio de seus familiares. A luta dos estudantes ganhou enorme repercussão nacional e apoio em diversos países.

As manifestações e ocupações das escolas fizeram o governo Alckmin recuar. O adiamento do plano foi divulgado justamente no dia em que foi publicada a pesquisa Datafolha que apresentava a menor popularidade do governador durante todo o seu mandato. O processo de Reorganização Escolar “foi adiado pelo Governo do Estado, a fim de ampliar o diálogo com pais, alunos e comunidade escolar”, divulgou o site da secretaria de educação do estado de São Paulo, em 4 de dezembro.

Avaliação do Governo Geraldo Alckmin

 

Mas o que chama a atenção nesse processo é a forma autoritária e truculenta da Polícia Militar para lidar com esse tipo de movimento organizado por jovens estudantes. Soma-se a isso a leniência do governador e da mídia aos acontecimentos. Primeiro, o governo paulista e a mídia silenciaram-se sobre os atos e ocupações. Depois, tentaram justificar o autoritarismo, a violência e o abuso de poder da polícia. No entanto, em denúncias dos manifestantes, vídeos e relatos de familiares, aparece a truculência da repressão às ocupações e protestos promovidos pelos alunos pela PM. Abaixo, temos alguns desses registros.

Julia Alves Farias, 15 anos, aluna do curso  técnico de Meio Ambiente, na Escola Técnica Conselheiro Antonio Prado (ETECAP), escola administrada pelo Centro Paula Souza, participou da ocupação.

“Nós agimos de forma totalmente passiva, tanto nas ocupações, quanto nas ruas. As agressões sempre partiam da polícia”.

Julia lembra que o ECA (Estatuto da Criança e do Adolescente) foi desrespeitado em muitos momentos pela PM. Segundo a estudante, a ação dos alunos não merecia de forma alguma uma resposta violenta.

“Cantávamos gritos de ordem, segurávamos as placas que nós mesmos fizemos, andávamos de mãos dadas. Nosso objetivo era mostrar que é a união que conquista direitos e não a violência”.

A estudante também diz que muitas vezes a polícia combate manifestações que cobram direitos que o policial, como civil, também necessita, de forma direta ou indireta. Sobre a desmilitarização da Polícia Militar, ela é enfática: “Eu apoio a desmilitarização, tendo em vista que o treinamento das forças armadas tem como objetivo lutar e matar o inimigo”.

 

Desmilitarização

Em palestra pública realizada no Museu de Artes de São Paulo (MASP) no dia 1º de julho de 2013, o professor de Direito Penal na UFMG (Universidade Federal de Minas Gerais), Dr. Túlio Vianna, abordou com propriedade a questão e esclareceu o termo “Desmilitarização da Polícia”.

“Quando a gente fala em desmilitarização da polícia, muita gente não entende o que estamos querendo dizer. Acha que a gente quer que a polícia ande desarmada. Outros pensam que o problema é a farda. Não tem nada disso. O problema do militarismo é que a sua lógica é de treinar soldados para a guerra. A lógica de um militar é ter um inimigo a ser combatido e para isso faz o que for necessário para aniquilar este inimigo”, explicou o professor.

A recente história brasileira mostra que indígenas, estudantes e movimentos sociais são constantemente envolvidos em conflitos violentos com a PM durante manifestações em todo território nacional. Basicamente notamos que estes grupos são confrontados em atividades progressistas e que perturbam a estabilidade do sistema, atacando frontalmente a “ordem”, ou seja, a manutenção da hierarquia econômica, social e política. São indígenas ao exigir demarcação de terras e denunciar a violência de latifundiários para tomá-las; estudantes, ao exigir melhorias na educação e na infraestrutura escolar; e movimentos sociais, ao reivindicar direitos básicos de setores da sociedade marginalizados pelo Estado que são duramente reprimidos e logo colocados como baderneiros e aproveitadores.

Esses são grupos que, segundo Túlio, acabam sendo identificados como inimigos.

“Existe uma hierarquia, você tem um coronel, um capitão, um tenente e chega lá no soldado. E quem está abaixo do soldado? Os únicos que estão abaixo do soldado somos nós, os civis. E abaixo dos civis, somente mesmo os ‘bandidos’, ‘marginais, ‘vagabundos’ e ‘subversivos’, ‘vândalos’ e ‘manifestantes’. Ou seja, todo mundo, que na visão maniqueista dele, vê como inimigo”.

Essas respostas violentas acabam por intervir diretamente na prática democrática da nossa sociedade, como afirmou o professor do Departamento de História Moderna e Contemporânea da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) da USP, Dr. Henrique Carneiro para o “Jornal do Campus” . Ao exemplificar que, em outros países, há um controle civil sobre instituições de segurança pública, o professor aponta:

“A Policia Militar é o resquício de um regime ditatorial. É um elemento de exceção por ter fórum privilegiado e ser vinculada a uma hierarquia militar. Além disso, a instituição é voltada unicamente para a repressão social”

A necessidade de uma mudança estrutural e mental da conduta da Polícia Militar vem há tempos sendo defendida por estudiosos, organizações da sociedade civil e organizações de direitos humanos que entendem que a Polícia deva ser mais humanizada e voltada para a proteção da população.

No entanto, para que essa mudança ocorra, Vianna orienta o caminho a ser seguido.

“No caso da Polícia Militar, como ela é prevista na Constituição, é necessária uma proposta de emenda constitucional, conhecida como PEC, para que a polícia seja unificada e civilizada. Já existe uma proposta de emenda constitucional, a PEC 102, que não faz especificamente a unificação e a desmilitarização, mas autoriza que cada estado federado possa fazê-lo caso julgue necessário”.

Há três anos, o professor Tulio Vianna fez essa declaração. Ainda hoje esse processo não avançou. Isso significa que é fundamental a participação da sociedade civil para que possamos avançar nesse árduo processo de humanizar a Polícia em nosso país.

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