Entrevista: Jogo 10 da noite, NÃO!

Jogos de diferentes campeonatos de futebol que ocorrem no Brasil ou em que a seleção brasileira participa são disputados às dez horas da noite.
Mas o horário não é propício à prática esportiva e pode trazer sérios problemas aos jogadores. Também para as torcidas o horário não é propício. Mas,
afinal, a quem ele interessa?

O debate ganhou fôlego na última semana quando o jogo entre Brasil e Argentina, que seria disputado no dia 12 de novembro, às 21h (22h no horário de Brasília), foi cancelado em virtude da chuva que caía na capital Argentina. Durante as negociações para remarcar a partida, Gilmar Rinaldi, dirigente da CBF (Confederação Brasileira de Futebol), afirmou que o adversário queria que o jogo fosse realizado às 20h (21h no horário de Brasília), o mesmo em que muitas partidas disputadas no país acontecem, mas a confederação preferiu manter no horário previsto anteriormente, em que as partidas brasileiras costumam acontecer.

Sobre o assunto, Felipe Bianchi, do coletivo “Futebol, mídia e democracia“, falou ao Conexão Cotuca, esclarecendo as questões envolvidas na determinação de horários de jogos e suas relações com a mídia.

Conexão Cotuca: Como surgiu e como se organiza o Coletivo “Futebol, mídia e democracia”?

Felipe Bianchi: O Coletivo “Futebol, mídia e democracia” foi fundado a partir do Centro de Estudos da Mídia Alternativa Barão de Itararé. Após algumas conversas e reuniões, surgiu a proposta de reunirmos jornalistas, torcedores (ligados ou não a torcidas organizadas), ativistas sociais (ligados ou não ao movimento social organizado) e demais interessados no projeto de construir uma agenda permanente de lutas envolvendo os temas futebol, mídia e democracia. Em nossa avaliação, há uma massa crítica significativa no Brasil, além de um consenso razoável entre os setores interessados nessa discussão, quanto ao caráter antidemocrático da gestão do futebol brasileiro, passando pelo obscurantismo das entidades mandatárias do desporto – notadamente a CBF, com seu caráter privado e sua reputação envolta em escândalos de corrupção – e a promiscuidade no “casamento” entre a CBF e a Rede Globo, que monopoliza e contamina o futebol com seus interesses comerciais. O coletivo se organiza de forma bastante horizontal, com abertura a qualquer interessado para participar do processo de construção. Há reuniões quinzenais e estamos em processo de regionalização dos trabalhos, ou seja, há grupos em diversas regiões do país que discutem, também, questões e ações locais, além dos debates de abrangência nacional.

CC: Quais são os objetivos da campanha “Jogo às 10 da noite, não” e quais estratégias têm sido usadas?

FB: O jogo às 22h é um dos principais símbolos do poder e da hegemonia exercidos pela Rede Globo no futebol brasileiro. A obediência da CBF ao alinhar o horário das partidas com o término das novelas ‘globais’ sobrepõe interesses explicitamente comerciais ao interesse público: além de afetar a rotina de milhões de trabalhadores que despertam cedo para a jornada de trabalho, há o grave obstáculo da falta de transporte público coletivo para os torcedores, obrigados a cometerem sacrifícios para acompanhar seus clubes de coração ou, em última instância, afastando-os dos estádios e esvaziando o sentido popular e cultural do hábito de frequentar estádios.

É possível falarmos em dois objetivos principais da campanha. O primeiro, logicamente, é vocalizar essa demanda quase que consensual das torcidas de norte a sul do país contra uma clara imposição da Rede Globo. Acreditamos que, devido ao hermetismo que impera na sala de reuniões da Globo e da CBF, só a pressão popular pode forçar essa demanda a entrar na pauta das instituições citadas. O segundo objetivo é mais amplo: ao lançar uma bandeira de fácil identificação dos torcedores, ampliar o alcance das pautas do coletivo para ganhar musculatura e capilaridade nessa e em campanhas futuras – há uma nova campanha em gestação, por exemplo, para reivindicar a transmissão de jogos de clubes de menor expressão e de regiões fora do famigerado eixo Rio-São Paulo. Temos usado intensamente as redes sociais para divulgar a campanha. Através delas, chamamos os torcedores a imprimirem o cartaz da campanha nas cores de seus clubes (os modelos estão disponíveis em nossa página no Facebook) e publicarem fotos com os cartazes nos estádios. Alguns torcedores também confeccionam faixas e bandeiras, dependendo das condições de cada um. Essas ações têm tido grande repercussão na Internet.

A campanha disponibiliza seu logo em diversas cores tentando atender a maior quantidade de clubes possível.

 

CC: Pensando no torcedor e no atleta, quais seriam os benefícios da mudança de horário?

FB: Para o torcedor, a mudança de horário significa, principalmente, a garantia das condições mínimas de acesso às partidas de futebol, pela questão do transporte público, da segurança e da tranquilidade de não ter que chegar em casa, necessariamente, de madrugada. Ou seja, garante o bem estar do torcedor, já afetado pelo crescente processo de elitização dos estádios, com políticas elitistas de precificação de ingressos. Em síntese, derrubar os jogos das 22h é uma vitória de quem enxerga e luta por um futebol mais democrático e popular, de quem prioriza o esporte como elemento de cultura popular, não como mera mercadoria. Como o próprio ex-jogador Alex (Coritiba, Palmeiras e Cruzeiro) comentou em depoimento com ampla repercussão na mídia e na Internet, as mudanças também beneficiam os jogadores, que são obrigados a exercer a atividade desportiva em alta intensidade literalmente no fim do dia.

CC: Vocês possuem propostas de melhores horários para substituir os jogos das 22h?

FB: Como há diversidade nas demandas regionais quanto ao que seria um horário ideal para os jogos, não elegemos nenhuma proposta de horário ideal para a campanha. Entretanto, há um consenso, entre os membros do coletivo, quanto à faixa entre 20h e 21h.

CC: Como as pessoas podem apoiar e participar da campanha?

FB: As pessoas podem informar-se através da página da campanha e do coletivo no Facebook. Nas páginas, é possível acompanhar o agendamento e a divulgação de ações, bem como encontrar material como o cartaz na cor de dezenas de clubes, para serem impressos e levados ao estádio. Também adotamos a hashtag #Jogo10daNoiteNao para compilar esse material disseminado nas redes. As reuniões do coletivo também são uma boa forma de participação, bastando entrar em contato pela página ou ficar atento aos anúncios.

CC: Há outros casos, no mundo, em que o interesse público prevaleceu na transmissão esportiva e nos horários dos jogos? No mesmo sentido, o que vocês acham sobre a estatização da transmissão de futebol, como ocorreu na Argentina?

FB: Para além da questão do interesse público, a maioria dos países europeus, por exemplo, adota critérios mais democráticos e transparentes para a negociação dos direitos de transmissão, tanto com os clubes, quanto com as empresas de mídia. O caso argentino é emblemático, até pela semelhança entre o monopólio da Rede Globo e o do grupo Clarín. O Clarín não só detinha os direitos de transmissão, como proibia os demais veículos de passar sequer os melhores momentos e gols da primeira divisão antes de serem exibidos pelo seu tradicional programa dominical. Além disso, os jogos só eram televisionados em canais pagos, privando milhões de torcedores de acompanhar seus times pela televisão – a não ser que fossem clientes da TV a cabo (outro setor com forte presença do Clarín). Sem acordo entre a Associação do Futebol Argentino (AFA) e o Clarín para a renovação de contrato, o governo argentino resolveu comprar a briga – e comprou os direitos da AFA, repassando-os para a TV Pública. O canal passa partidas simultâneas às sextas, sábados, domingos e segundas-feiras, sendo que o último horário em que começam as partidas é às 21h. Além disso, todos os jogos têm transmissão em tempo real e em alta qualidade via streaming, em um canal do YouTube. Entendemos que a Argentina não deve, necessariamente, servir de modelo, mas seguramente deve ser uma referência na luta contra o monopólio midiático sobre os direitos de transmissão, a promiscuidade de interesses entre Globo e CBF e, também, pela democratização da comunicação.

Charge de André Fidusi publicada na página do Facebook da campanha "Jogo 10 da Noite, NÃO"
Charge de André Fidusi publicada na página do Facebook da campanha “Jogo 10 da Noite, NÃO”